Datena, cadeiras e as violências aceitáveis da política
Um banquinho, uma confusão: A cadeirada não inaugura nada na violência política pós-2014
Tem aquela cena do “The Dark Knight” de 2008 em que um policial é constantemente provocado por um Coringa algemado numa cadeira de interrogatório. O policial diz “Eu sei que você quer que eu te bata, então eu tenho que fazer muito bem feito para você não gostar” enquanto arregaça as mangas. Desnecessário dizer que é isso que permite ao Coringa fugir.
Com alguns dias do acontecido eu imagino que a cena da cadeirada do Datena no Marçal já esteja fazendo parte dos compilados de “Melhores momentos dos debates brasileiros”, achando seu lugar ao Sol junto com os cortes do Brizola xingando uma plateia inteira de “filhotes da ditadura”, do Collor se recusando a perguntar qualquer coisa ao Enéas e daquele candidato a prefeito de Porto Alegre que num debate em 2020 (dentro de um carro) começou a cantar uma música infantil no final do seu tempo. Se a política brasileira e os debates sempre renderam esse tipo de entretenimento até então a gente não tinha presenciado um violência. Será mesmo? Bom, pelo menos não uma violência física.
A violência física na política brasileira não é sequer uma novidade no circuito. Tem a cusparada do Jean, o Kassab expulsando com empurrões alguém de um hospital e o supra sumo que é o senador Arnon de Mello pegar uma arma no congresso e matar um colega de casa. Ainda por cima um colega por engano, que nada tinha a ver com o imbróglio. E sim, nada aconteceu com ele por isso. Mas são sempre em momentos de atuação política. Quando temos um debate, que é onde os candidatos mais se preparam para se concentrar em saber que estão sendo observado por potencialmente milhões, essa realmente foi a primeira vez por essas bandas.
Mas antes de chegar e voltar a nossa cadeirada dos últimos dias eu preciso parar um pouco e falar dos dois personagens que estão um em cada ponta da mobília. Primeiramente, vamos voltar 35 anos no tempo e falar de José Luiz Datena.
Datena é o repórter esportivo que em 1989 foi demitido da EPTV, afiliada da Rede Globo em Ribeirão Preto, por aparecer no palanque com o então candidato a presidente Lula. Isso o leva para a TV Bandeirantes, onde ganha mais espaço e passa a fazer outros trabalhos fora do esporte. Afora um jornalismo de visitar rincões do Brasil, entrevistas e um ou outro Game Show de qualidade questionável, você sabe muito bem onde Datena ficou conhecido: No jornalismo policial.
Ele não inaugurou esse filão, assim como o Brasil não inventou o futebol. Mas ele deixou uma impressão digital nesse mercado com bordões e estilo únicos. Dia após dia, Datena estava nos lares de São Paulo se indignando. E se indignando com os problemas que nós sofremos. Enchentes, tiroteios, assaltos. Ele reclamava mais do que conosco, ele reclamava por nós, pedindo respostas das autoridades e cobrando o polícia. É claro que daí para um salto político como Wagner Montes por exemplo era só uma questão de tempo. Só que tempo né?
Enquanto ficou filiado ao PT (pois é) de 1992 até 2015 houve da parte dele manifestações tímidas sobre intenções políticas, mas depois da saída dele do Partido dos Trabalhadores (e pulando direto pro PP) ele começou a falar mais abertamente sobre isso: Queria entrar para a vida pública. Mas depois de DEZ partidos o que se via eram seguidas desistências para concorrer ao mais diversos cargos. Depois de anos e anos ensaiando esse movimento e sim, sendo chamado de arregão diversas vezes por isso, Datena finalmente disse sim e saiu candidato a prefeito de São Paulo, uma cidade onde bem, é onde esse tipo de coisa de vez em quando acontece.
Aqui é preciso dizer que entendo em certa parte o sentimento de frustração do Datena. Sua candidatura não decolar não é surpresa para ninguém, exceto para ele próprio. Passou anos sendo querido pela sua audiência cativa, o que lhe conferiu uma espécie de street cred na mídia como um dos rostos mais conhecidos. Flertou anos e anos com uma carreira na vida pública e achou que toda a bagagem televisiva seria o suficiente para ser carregado nos braços do povo até uma cadeira do executivo. Quando finalmente pensou “agora vai”, não foi, e ao se lançar como postulante da carreira política perdeu a capacidade de apenas atirar pedras e se tornou vidraça, coisa que deve estar bem desacostumado. Deve sim ser decepcionante. É nesse contexto de já quase ter jogado a toalha que Datena esteve no púlpito número 2 da TV Cultura ouvindo o que outro personagem dessa história dizia: Pablo Marçal.
Não sei explicar muito bem o Marçal, mas acho que a maneira mais próxima de tentar descrevê-lo seria dizer que ele é a versão ser vivo daquele email do príncipe nigeriano que precisa de sua ajuda. Todo mundo sabe que para ser coach é preciso ter algum grau de picaretagem embutida na alma, mas Marçal não tem isso em graus, tem que medir essa escala com alguma ordem de grandeza para valores maiores, como gigatons ou anos-luz. Nesse ponto você já sabe muita coisa sobre ele, sobre a fatídica trilha que deixou todo mundo na merda, do assessor que morreu após uma maratona inventada por ele e das estranhas conexões que colocam ele num nó e o PCC em outro. Nesse ponto, boa parte disso que você sabe foi contra a sua vontade. Eu só quero colocar um aditivo menos a ver com sua ficha corrida e mais com seu presente: Marçal correu um sério risco de ter feito um cálculo errado e com isso ganhar a eleição.
Ficou claro que sua participação nessa eleição era muito menos sobre ganhar um cargo que paga um salário que provavelmente chega nem em 5% do que ele ganha, e sim sobre captar mais atenção, uma publicidade gratuita que arrasta mais e mais ignóbeis que assistirão suas palestras e comprarão seus cursos. E para isso ele precisa primeiro posar de machão e outsider, alguém que não é “igual a todos esses que aí estão” e que é melhor que todos por isso.
É nesse roteiro que Pablo Marçal se comportou como aquele cara disposto a encher o saco de todo mundo no recreio, e Datena não foi nem seu primeiro alvo nessa eleição. Ou seja, tem método. Suas últimas palavras antes da cadeirada foram algo mais ou menos como “você não é homem de me agredir”. Podemos julgar o fato de Datena ter cedido aos pensamentos intrusivos enquanto foi acusado constantemente, mas não podemos dizer que ele tirou isso completamente do nada. De um lado alguém fazendo de tudo pra você explodir, do outro lado alguém com muitos motivos para explodir. Todo coach merece uma cadeirada só por ser coach, mas um ter efetivamente levado é uma outra discussão.
Temos a política institucional - que são as pessoas eleitas e que ocupam cargos de confiança - e temos a política social, do dia a dia. Essa segunda já arrastou para cima a espetacularização da violência faz tempo. Falo de uma pessoa assassinada na sua festa de aniversário porque seu tema era PT, do Mestre Moa, de diversos casos. Mas falo também da violência tal como Marshall Rosenberg definiu: Linguagem violenta também é violência.
Essa nova visão de que a violência é muito mais do que apenas o físico nos coloca num mirante perfeito para observar o trem da sociedade andando nesses trilhos (sem freio) (com uma curva acentuada logo ali na frente, ó) de forma muito natural. A gente pratica nossas microviolências verbais diariamente. Como por exemplo no Twitter, onde vamos paulatinamente nos tornando o velho que grita para a televisão. Já tem algum tempo que se usa emojis de queijo suíço para representar a Marielle Franco e caveiras para o Olavo de Carvalho. É nesse roteiro que a cadeirada, ao contrário do que os editores de jornalões dizem, não “cruza uma linha”. Ela é só mais uma estação que o mesmo trem vem passando até o Terminal Apocalipse. E talvez a mais crua e visceral das violências recentes, mas por isso mesmo a mais honesta. Peço perdão pela naturalização da violência, mas acredito que aqui eu seja só um mensageiro, ou melhor, um auto declarado ombudsman do jornalismo que noticiou friamente quando uma caravana de um pré-candidato a presidente foi alvejada por tiros em 2018, mas que prontamente se indignou quando um idoso sacou uma arma vendida pela Tok&Stok.
Porque ainda tem isso, aquela cadeirada é muito mais um ato simbólico do que uma agressão propriamente dita. Datena, que já estava reclamando com correligionários do cansaço de fazer caminhadas na campanha, não teve o preparo físico necessário para dar uma cadeirada correta. Marçal ficou de pé por todo o tempo da confusão e tal qual um Neymar do Trambique foi simular uma contusão numa ambulância que pegou mal até para seus apoiadores, tanto que precisou apagar o vídeo da cena e se explicar. É um erro tremendo chamar um idoso para a briga, ou você é humilhado apanhando do idoso ou você é humilhado por ser covarde e bater em idoso.
Eu gostaria de dizer que ao final dessas eleições paulistanas aprenderemos que blá blá blá, mas a verdade é que não aprendemos nada desde 2014 quando um playboy achou ruim ter perdido uma eleição e os jornais preferiram tacar fogo na democracia, talvez até iremos desaprender um pouco mais. Entre cadeiras, xingamentos e ofensas, não tem nada de muito diferente. Só variantes expressões artísticas do espetáculo.
***
“Sonambulismo… e outras Mazelas Sociais” é uma newsletter mais ou menos semanal que fala mais ou menos dos assuntos da atualidade. O conteúdo é 100% gratuito e não há planos de tornar uma assinatura recorrente aqui, pretendo que o conteúdo seja sempre gratuito para todos. Mas se você gostou do texto e quer ajudar quem escreveu a pagar suas contas pode fazer uma contribuição de qualquer valor na chave pix@diegopaiva.com.br que seria um grande incentivo. E não, você não ganha posts exclusivos ou acesso a uma área de membros, peço aqui que cada um ajude com o valor que quiser sem preço fixo de acessos exclusivos. Outra forma de ajudar muito é assinando a newsletter no botão aí embaixo e compartilhando o texto por aí. Muito obrigado!