Não precisamos falar sobre festivais (mas vamos mesmo assim)
Terminado mais um Rock in Rio uma questão que sempre fica: Para quem é o festival?
Assim como estaleiros quebram uma garrafa no casco de um navio quando ele é lançado pela primeira vez ao mar, e fitas são cortadas por políticos ao inaugurarem obras, você sabe que o Rock in Rio está oficialmente aberto quando chega voando na sua rede social mais próxima a frase “agora o Rock in Rio só tem rock no nome mesmo”. Quando ouço isso ao vivo, costumo responder: “É verdade, diferente da primeira edição original, que contou com grandes expoentes do death metal como Moraes Moreira e James Taylor”.
Se você acha curioso que um festival que nasceu para ser o maior do mundo coloque em seu nome um estilo musical, saiba que isso faz parte da estratégia da marca desde o princípio. Os estadounidenses usam a palavra "rock" não só para definir aquela banda composta por cinco caras, formada na garagem dos pais de um deles, com o objetivo de conquistar as menininhas da escola. O verbo “to rock” ultrapassa apenas o significado de gênero musical; a gente não reparava muito porque os filmes da Sessão da Tarde sempre traduziam “let’s rock” como “vamos detonar”.
Dentro dessa perspectiva, é muito tranquilo dizer que sim, a Madonna também é uma rockstar, assim como Freddie Mercury ou Supla. E o festival cumpriu — com louvor, desde a primeira edição — o seu grande propósito, que era colocar o Rio (e o Brasil) no circuito dos grandes shows.
Não que antes da criação do Medina não houvesse shows internacionais no país; Bill Haley, do “Rock Around the Clock”, esteve aqui meses antes do Brasil ganhar sua primeira Copa do Mundo. Só que foi o festival que mostrou que a gente não devia nada ao resto do mundo em termos de estrutura e audiência. E sim, isso catapultou uma oferta muito maior de atrações internacionais em grandes produções, como um Frank Sinatra enchendo sozinho um Maracanã. Audiência, aliás, que mostrou pela primeira vez, em escala global, o jeitinho brasileiro de assistir a shows: sendo artistas também. Foi a primeira vez que a plateia teve iluminação especial. Havia músicas como “We Will Rock You”, criadas especialmente para que o público fosse o instrumento dela, mas nem o Queen, que a criou, foi imune a se encantar com o imenso karaokê que o público brasileiro transformou “Love of My Life” sem aviso prévio nenhum.
Além de trazer shows esperados e desejados, o festival também despejou audiência e estrutura para que grandes artistas brasileiros se tornassem, er, grandes artistas brasileiros. Bandas como os Paralamas do Sucesso são o que são em parte por causa da capacidade de segurar um público daquele tamanho com tanta energia. Em resumo, amando ou odiando, o Rock in Rio foi um marco temporal do entretenimento e da produção nacional. Mas, passados 40 anos, o festival mudou de fato? Em alguns pontos, sim, mas, em termos gerais, acho que muita coisa ainda permanece. E isso, mais do que bom ou ruim, é também uma reação aos novos tempos, porque o novo sempre vem.
Se a gente pegar o pós-pandemia, vimos explodir uma diversa gama de festivais pelo país, e por “diversa gama” eu só quero dizer “muitos”, porque a grande maioria não teve nada muito diversa. Os lineups se assemelharam muito a um circuito de vôlei de praia com as mesmas duplas em praias diferentes, algo como “Chama a Marina Sena e aquela galera”. Parte dessa explosão é consequência dos anos que ficamos em casa e estávamos loucos para aglomerar com som ruim de novo, mas faltou ousadia em muitas fórmulas e conceitos, e esses mesmos festivais já começam a se desfazer por aí. Embora haja exemplos bem pequenos e pouco falados do tipo de festival que vou mencionar agora, faltaram edições mais grandiosas de eventos mais específicos, como o Rock do Hollywood Rock (esse sim Rock no sentido mais do ritmo) ou do alternativo, como era o Free Jazz Festival.
(Pensando nisso e nesses nomes, seria a volta das propagandas tabagistas a solução para festivais com melhores curadorias e almas? Seria o câncer de pulmão o preço que devemos pagar por atrações mais conectadas e com algum fio narrativo entre os shows? Divago, mas vamos voltar para o assunto).
A verdade é que a maioria desses festivais está fadada a acabar do nada, porque, em sua essência, não trazem nada diferente do que o Rock in Rio oferece. E veja bem, aqui eu não quero nem falar se são bons ou ruins; o julgamento pode até ficar em aberto, eu só penso no diferente. A questão primordial aqui é que eles querem ser como o Rock in Rio sem a trajetória e o histórico do Rock in Rio.
O festival hoje é basicamente uma megaestrutura de alumínio e aparelhagem para emular uma versão gigante de uma playlist do Spotify gerada aleatoriamente por um algoritmo meio bêbado. Sim, a gente salta de Ed Sheeran para Deep Purple, passa entre Guns N’ Roses e Neil Young e sempre tem uma vaguinha para Ivete Sangalo, uma espécie de Paulo Baier do festival atualmente. E, na boa? Tá tudo bem. Quem diz isso não sou eu, é o próprio Medina que, em uma entrevista para a imprensa portuguesa, disse que 50% do público, segundo uma pesquisa, vai ao festival só pelo festival, não pelas músicas, mas que ele acredita que esses números estão errados, que deve ser quase 100%. Eu, particularmente, tive um leve faniquito na pálpebra esquerda quando li posts em redes sociais de gente que reserva um dos dias do Rock in Rio apenas para enfrentar as grandiosas filas dos quiosques de patrocinadores e ganhar os brindes de suas ativações. Eu queria entender que estágio do capitalismo é esse onde um ingresso de 800 reais serve para ganhar brindes de qualidade duvidosa que juntos não devem valer nem 100 reais, mas ei, olha a fotinho no Insta com essa sacola!
A gente sabe que música hoje é muito mais do que notas, intervalos, acordes e ritmos. Eu já falei aqui que até o papel de fã deu uma transformada, porque a música em si não. Eu acho até bom; é nesses momentos que coisas novas surgem, seja para melhorar o que está posto ou para esmagar e recomeçar. Música sempre foi uma linguagem, um roteiro, uma forma de contar uma história e expressar um sentimento, como um filme, uma peça, uma escultura ou um quadro.
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E por falar sobre como a música é expressão, eu queria indicar para vocês os quadros musicais da Zebra Filomena, uma loja sensacional com uma variada coleção de quadros inspirados em músicas, tudo feito com material de ótima qualidade. Você com certeza vai encontrar uma das suas músicas favoritas lá, mas, caso não encontre aquela preferida, pode entrar em contato com a loja e encomendar uma criação nova! Ou, se preferir, aproveitar a promoção de queima de estoque deles.
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Se hoje o público do Rock in Rio entende música como um dos muitos acessórios do festival, é de certa forma mérito do evento, que não está muito preocupado com conceitos e sim em vender ingressos. Eu já tive a oportunidade de trabalhar em produções de bandas em duas edições e posso dizer que o nível de comprometimento e organização — mesmo que no meio do caos — é muito bom. Principalmente porque o Rock in Rio nunca mudou sua essência: ser essa salada mesmo.
O que me entristece é que essa fórmula de sucesso seja vista em outros lugares como a única fórmula de sucesso. Que o conceito de todo e qualquer festival que surja seja reunir bandas com o mesmo propósito que estudantes se juntam em repúblicas: economizar custos reunindo todo mundo em um palco só. Para mim, ainda há espaço para coisas mais específicas e inusitadas, coisas mais exclusivas, coisas que só aconteceriam ali, naquele festival.
Esse talvez seja meu grande sonho de uma noite de verão, mas prefiro não perder minha verve sonhadora e acreditar que, assim como um outro mundo é possível, como prega o festival, um outro festival também é possível. Coisas que ficaram perdidas com o tempo; os Paralamas do Sucesso, se estivessem começando hoje, talvez não estivessem no Palco Mundo. E quantos Paralamas existem hoje por aí que poderiam ser uma novidade, um sopro de originalidade que teria uma sonoridade para dialogar com um headline do dia? Acho perfeitamente possível trabalhar ao mesmo tempo com nichos específicos enquanto coloca-se esses nichos para conversar, sem que para isso uma chuva de garrafas voe no Carlinhos Brown dessa geração.
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